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segunda-feira, 1 de março de 2010

OS DESENHOS DE MINHA MÃE


Não fôra a mentalidade burguesa e retrógrada da época, minha mãe, Maria Georgette, Baptista Martins d’ Alte Rodrigues (Gette), nascida a 29 de Agosto de 1919, teria seguido, quando jovem, uma formação em Belas-Artes. Em contrapartida, frequentou o Conservatório de Música, onde não se faziam os desenhos de modelo vivo, tão “pecaminosos” e censurados pela sociedade. Teve mestres ilustres, como Cláudyo Carneiro (composição), Armanda Dubini (piano), o Dr. Brochado (História da Música), o Professor Neves (solfejo) e a conceituada ensaiadora, a pianista. Emília Resende, mãe do pintor portuense Júlio Resende, que foi meu Mestre na ESBAP.
Esta sensibilização musical viria ao encontro de meu pai, sensível a todas as artes. Caricaturista nato, quem o conheceu de perto viu nele um potencial actor humorista, no modo como se exprimia, com imensa graça, a contar mil e uma histórias que vivenciava.
Meu avô materno formou-se em medicina aos 22 anos de idade. Na Guerra de 14-18, percorreu em França os campos de batalha, para tratar os “Feridos por armas de fogo”, título, aliás, da sua Tese de Doutoramento. Posteriormente, fez algumas cadeiras na Academia de Belas-Artes, tendo exercido, além da medicina, (muitas vezes a título gratuito, como na Assistência aos Tuberculosos), a função de professor de Desenho e de Matemática, no Colégio Universal e no Liceu Rodrigues de Freitas do Porto.
Georgette foi um nome trazido da guerra. Mãe de cinco filhos, dois deles pintores, eu e meu irmão Miguel d’ Alte, sobejamente conhecido no meio artístico do Porto, pelo seu grande talento e originalidade, capaz de transformar um objecto banal numa obra de arte. Próximo da mãe, que adora as pequenas construções com cascas de nozes, búzios, botões ou trapos: a riqueza da expressão através dos materiais “pobres” ou simples, ao alcance de qualquer mão.
Gette tem vivido num ambiente propício à actividade criativa no domínio das Artes Plásticas. Não admira pois, que tenha realizado estes desenhos, livres de convenções académicas, que se desenvolvem pela descoberta de uma linguagem pessoal, abstractizante. Com 90 anos de idade e com graves problemas de saúde, os seus desenhos são, desde Março de 2009, a sua terapia. Por vezes, surpreendida com o que lhe vai surgindo no papel, exclama: “olha, aqui apareceu-me este gato! E ali uma serpente!”. E ali um pássaro! E acrescenta: “sabes, enquanto estou a desenhar, não penso em mais nada!”.
Tanto quanto o possível, é importante manter uma actividade ocupacional agradável, à medida que envelhecemos. A consequente saúde mental, através do prazer de desenhar, pintar, escrever, ou tocar um instrumento, contraria a senilidade. A imaginação criativa torna as pessoas mais lúcidas, mais “sábias” e mais felizes. “A imaginação é a rainha das faculdades” (Baudelaire).
Os desenhos de minha mãe remetem para conhecidos casos de autenticidade expressiva, como a pintura “naϊve” de Séraphine ou a arte psicopatológica de Aloϊse. A primeira, empregada doméstica do conhecido crítico de arte alemão Guilherme Uhde, primeiro marido de Sónia Delaunay e o primeiro a escrever sobre Henri Rousseau, revelou-se aos 60 anos de idade, através de uma imagética plena de fantasia, intensamente cromática, que se integra na Poética do Maravilhoso; a segunda, com um carácter mais obsessivo, próprio da doença mental, revela, através das personagens ilustres que representa, teatralidade e sensualidade plástica. A cantora de ópera, com amplos decotes em vestidos de gala, surge com frequência, para representar a profissão sonhada.
Sem respeitar proporções ou sugerir profundidade, a pintura escrupulosamente realista de Henri Rousseau não deixa de nos fascinar, pelo seu poder encantatório. Trata-se de um realismo mágico, que também ilustra a Poética do Maravilhoso, devolvendo-nos aspectos aliciantes da natureza, não destituída de uma dimensão onírica, que levou André Breton a considerá-lo surrealista. Na pintura “naϊve” há uma “imperfeição” naturalista assumida, que visa essencialmente reconhecer experiências concretas, segundo um processo de desenvolvimento aparentemente incompleto, como na criança, cuja expressão ideográfica representa muito mais o que sabe do que o que vê, revelando o seu grau de conhecimentos. No caso da pintura “naϊve”, para além da pseudo insuficiência naturalista, mantêm-se características ideográficas em duas faculdades artísticas elementares: o poder de expressão e o sentido decorativo. Trata-se de uma espécie de confrontação com o mundo, tendo por conteúdo psicológico uma imagem pré-racional do mesmo. Há uma pureza de expressão no modo minucioso como são elaboradas as imagens, onde nada é gratuito, mas profundamente significativo, provocando um estado de encantamento no espectador, ao reportar-se, frequentemente, às boas recordações da infância.
Talvez seja insuficiente designar como “arte psicopatológica” as formas de expressão praticadas por indivíduos como Aloϊse, que sofreram e amaram, dando-nos o melhor de si. São imagens que nos tocam fundo. Designá-las apenas como tal, poderá negar a sua função terapêutica e libertadora, capaz de transmitir importantes mensagens, o que não seria possível em condições ditas normais. Durante muito tempo, criou-se um mal entendido entre génio e loucura. Quantos génios passaram por “loucos” (Van Gogh, Antonin Artaud, Salvador Dali, Facteur Cheval), só por serem capazes de criar linguagens inovadoras, que ultrapassam as normas convencionais! Certos desenhos, pinturas e objectos de doentes mentais possuem, pelo despojamento de padrões convencionais, uma intencionalidade emocional e uma extraordinária articulação de formas, que atingem, por vezes, um nível artístico superior. À margem do Ensino Artístico oficial, o pintor Jean Dubuffet defendeu a “Arte Bruta” da criança, do homem comum e do “louco”. O esquizofrénico, cuja doença lhe permite agir à margem de preconceitos, cria (nos melhores casos), o seu universo visionário, preenchido com obsessivos símbolos e signos, que reflectem emoções profundas.
O pintor surrealista português Cruzeiro Seixas fixou-se em Angola entre 1952 e 1964. A sua aventura por terras de África, um amor inteiramente correspondido, permitiu-lhe o encontro com as raízes milenárias dos primitivos, bem como a realização de uma parte significativa da sua obra poética e plástica. Cruzeiro Seixas tem também uma grande paixão pela arte “naïve” do homem comum, da criança e do “louco”, que se manifesta à margem do sistema instituído. Uma das maiores descobertas do séc. XX é para mim saber enfim olhar o desenho de uma criança, o encontro com a arte dos povos ditos primitivos e, por exemplo, as experiências (via mescalina) de um Henri Michaux, isto sem esquecer Miró ou a janela por onde espreitam os pintores de domingo[2], diz Cruzeiro Seixas, que acrescenta: O sol é feito de delinquentes de delito comum, de gentes que não vêm biografadas em parte alguma e nunca vestirão ridículos fatos de bronze, na praça pública.3]
Quando mostrei os desenhos de minha mãe a Cruzeiro Seixas, meu grande amigo, o pintor exclamou: “Isto é um espanto!”. E sei que o disse com sinceridade.




Dalila d’ Alte-Rodrigues
Janeiro, 2010

1.Referência ao amor que nutre pelo continente africano, muito frequente, em Cruzeiro Seixas (conversas ao vivo)
2.In Catálogo de uma exposição Colectiva: Cruzeiro Seixas, António José Francisco e Mário Cesariny. Lisboa: Galeria Perve, Outubro, 2006
3.Idem

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